07 Março 2022
A vasta onda de solidariedade suscitada pelo drama ucraniano não deve nos fazer esquecer das graves violações do Estado de direito na Polônia e na Hungria. Mas a unanimidade no acolhimento deve servir de estímulo para uma nova política migratória europeia.
Publicamos aqui o editorial do jornal Le Monde, 05-03-2022. A tradução da versão italiana é de Moisés Sbardelotto.
Sem esquecer as violações do Estado de direito da Polônia e da Hungria e algumas das suas discriminações nas fronteiras, a onda de solidariedade geral suscitada pela tragédia ucraniana deve servir de estímulo para uma nova política migratória europeia.
Muros, cercas e políticas hostis – exceto na Alemanha – em 2015 para barrar a entrada dos sírios; fronteiras escancaradas e um estatuto especial hoje para os ucranianos. O choque da agressão russa contra a Ucrânia e o fluxo de centenas de milhares de mulheres e crianças fugindo da guerra abalaram o panorama europeu das migrações.
Bastou uma semana, depois do início da ofensiva russa, para que os 27 Estados da União Europeia, incapazes há décadas de unificar as suas políticas e de distribuir entre si o acolhimento dos requerentes de asilo, decidissem conceder automaticamente aos refugiados ucranianos, na quinta-feira, 3 de março, uma “proteção temporária” que lhes dá o direito de permanência na União Europeia.
É preciso acolher favoravelmente essa manifestação de solidariedade, essa espetacular mudança de paradigma. A Europa, marcada por uma história sombria de refugiados antinazistas entregues à Alemanha, de errantes apátridas e de dissidentes presos, está empenhada em acolher as vítimas de uma guerra insensata contra um Estado soberano no seu próprio continente.
Infelizmente, há muitos testemunhos de tratamento discriminatório de “não brancos”, principalmente estudantes africanos que fogem da Ucrânia, nas fronteiras entre a Ucrânia e a Polônia, e entre a Ucrânia e a Hungria.
Na quarta-feira, 2 de março, na ONU, durante a votação da moção que pedia o fim da intervenção russa, a escolha de abstenção por diversos países africanos – incluindo o Senegal e a África do Sul –, assim como a denúncia por parte de diplomatas africanos desse duplo padrão, refletem um mal-estar.
De fato, a reviravolta dos regimes polonês e húngaro, que fecharam as suas fronteiras a afegãos e sírios, mas agora acolhem os ucranianos de braços abertos, revela um preconceito racista e antimuçulmano.
Da mesma forma, o giro de 180 graus dos políticos de direita e extrema-direita na Alemanha, França, Dinamarca e Itália reflete a mesma ideia de uma Europa “branca”, excludente e fechada.
A universalidade do direito de asilo deve ser defendida sem reservas, até mesmo para os russos contrários à guerra e perseguidos pelo regime de Vladimir Putin. A Convenção de Genebra sobre o estatuto dos refugiados proíbe explicitamente toda discriminação “por raça, religião ou país de origem”.
Como se poderia aplicar de forma discriminatória um direito concebido precisamente para proteger toda pessoa “que teme ser perseguida com razão” e “cuja vida e liberdade estão ameaçadas”?
Recordar a intangibilidade desse princípio absolutamente não impede de reconhecer as razões pelas quais o destino dos ucranianos comove particularmente os europeus, razões que não têm nada a ver com a cor da pele ou com a religião.
Para os europeus, a trágica memória da Segunda Guerra Mundial e do nazismo odiosamente invocado pelo chefe do Kremlin se somam à proximidade e às terríveis recordações dos anos de opressão soviética.
A vasta onda de solidariedade suscitada pelo drama ucraniano não deve nos fazer esquecer das graves violações do Estado de direito na Polônia e na Hungria. Mas a unanimidade no acolhimento deve servir de estímulo para uma nova política migratória europeia.
Como podem os países que gozaram da solidariedade dos 27 Estados para a proteção dos seus vizinhos ucranianos continuar rejeitando um mecanismo de partilha do acolhimento dos requerentes de asilo de qualquer proveniência?
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Guerra na Ucrânia força Europa a mudar de perspectiva sobre pedidos de asilo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU